27/11/2008

"Abria-se para você algo como um espaço mais limpo onde quase cabia a esperança"

"Tantas coisas começam e talvez acabem como um brinquedo, imagino que você achou graça ao encontrar um desenho ao lado do seu, atribuiu-o a um acaso ou a um capricho e só na segunda vez se deu conta de que era intencional e então o olhou devagar, inclusive voltou mais tarde para olhá-lo de novo, tomando as precauções de sempre: a rua em seu momento mais solitário, nenhum camburão nas esquinas próximas, aproximar-se com indiferença e nunca olhar os grafitti de frente, mas da outra calçada ou em diagonal, fingindo interesse na vitrine ao lado, saindo depressa.
Seu próprio brinquedo tinha começado por aborrecimento, não era na verdade um protesto contra o estado de coisas na cidade, o toque de recolher, a proibição ameaçadora de colocar cartazes ou escrever nos muros. Simplesmente você se divertia fazendo desenhos com giz colorido (o termo grafitti, tão de crítico de arte, não o agradava) e, de quando em quando, vindo vê-los e até com um pouco de sorte assistindo à chegada do caminhão municipal e os insultos inúteis dos empregados enquanto apagavam esses desenhos. Pouco importava que não fossem desenhos políticos, a proibição abrangia qualquer coisa, e se algum menino se tivesse atrevido a desenhar uma casa ou um cão, do mesmo modo o teriam apagado entre palavrões e ameaças. Já não se sabia muito bem na cidade de que lado estava verdadeiramente o medo; por isso talvez, você se divertia em dominar o seu e a cada momento escolher o lugar e a hora propícios para fazer um desenho.
Nunca havia ocorrido perigo porque sabia escolher bem, e no tempo que transcorria até que os caminhões da limpeza chegassem, abria-se para você algo como um espaço mais limpo onde quase cabia a esperança. Olhando de longe o desenho, podia ver as pessoas que ao passar o olhavam, ninguém parava, naturalmente, mas ninguém deixava de olhar o desenho, às vezes uma ligeira composição abstrata em duas cores, um perfil de pássaro ou duas figuras abraçadas. Uma única vez você escreveu uma frase, com giz preto: Dói também em mim. Não durou duas horas, e dessa vez a polícia em pessoa a fez desaparecer. Depois só continuou fazendo desenhos.
Quando o outro desenho surgiu do lado do seu, você quase teve medo, de repente o perigo se duplicava, alguém se animava como você a se divertir à beira do cárcere ou coisa pior, e esse alguém, ainda por cima, era uma mulher. Você mesmo não podia prová-lo, havia algo diferente e melhor que as provas mais cabais: um traço, uma predileção pelas cores quentes, uma aura. Talvez porque andava sozinho, imaginou assim por compensação; você a admirou, teve medo por ela, esperou que fosse a única vez, quase se delatou quando ela voltou a desenhar ao lado de outro desenho seu, uma vontade de rir, de ficar ali na frente como se os policiais fossem cegos ou idiotas.
Começou um tempo diferente, mais secreto, mais belo e ameaçador a uma só vez. Descuidando-se do emprego, a qualquer momento você saía com a esperança de surpreendê-la, escolheu para os seus desenhos essas ruas que podia percorrer em um único rápido itinerário; voltou de madrugada, ao anoitecer, às três da manhã. Foi um tempo de contradição insuportável, a decepção de encontrar um novo desenho dela junto a alguns dos seus e a rua vazia, e a de não encontrar nada e sentir a rua ainda mais vazia. Uma noite você viu o primeiro desenho dela sozinho; fizera-o com giz vermelho e azul em uma porta de garagem, aproveitando a textura das madeiras carcomidas e as cabeças dos pregos. Era mais que nunca ela, o traço, as cores, mas, além de tudo, você sentiu que esse desenho valia como um pedido ou uma interrogação, uma maneira de chamá-lo. Você voltou quando amanhecia, depois que as patrulhas rarearam em sua silenciosa drenagem, e no resto da porta desenhou uma apressada paisagem com velas e quebra-mares; se não fosse bem examinado, podia parecer uma brincadeira de traços ao acaso, mas ela saberia entendê-lo. Nessa noite você escapou por pouco de uma dupla de policiais, bebeu genebra sem parar no seu apartamento e falou a ela, disse-lhe tudo o que lhe vinha à boca como se fosse outro desenho sonoro, outro porto com velas, você a imaginou morena e silenciosa, escolheu lábios e seios, amou-a um pouco.
Quase em seguida pensou que ela buscaria uma resposta, que voltaria ao seu desenho como você agora voltava aos seus, e embora o perigo fosse cada vez maior depois dos atentados no mercado, você se atreveu a se aproximar da garagem, a rondar a quadra, a beber intermináveis cervejas no café da esquina. Era absurdo porque ela não pararia depois de ver o desenho, qualquer das muitas mulheres que iam e vinham podia ser ela. Ao amanhecer do segundo dia você escolheu um muro cinzento e desenhou um triângulo branco rodeado de manchas como folhas de carvalho; do mesmo café da esquina podia ver esse muro (já tinham limpado a porta da garagem e uma patrulha ia e vinha enfurecida), ao anoitecer você se afastou um pouco para escolher diferentes pontos de mira, deslocando-se de um lugar a outro, comprando coisas supérfluas nas lojas para não chamar muito a atenção. Já era noite fechada quando ouviu a sirena e os projetores varreram seus olhos. Havia um confuso ajuntamento perto do muro, contrariando toda a prudência você correu e só o acaso de um carro fazendo a volta na esquina e freando ao ver o camburão ajudou-o, seu vulto o protegeu e você pôde ver a luta, um cabelo preto puxado por mãos enluvadas, os pontapés e os gritos, a visão entrecortada de umas calças azuis antes que a atirassem no carro e a levassem.
Muito depois (era horrível assustar-se assim, era horrível pensar que isso acontecia por culpa do seu desenho no muro cinzento) você se misturou com outras pessoas e conseguiu ver um esboço em azul, os traços desse laranja que era como o seu nome ou a sua boca, ela ali nesse desenho truncado que os policiais haviam sujado antes de levá-la; restava o suficiente para compreender que quisera responder ao seu triângulo com outra figura, um círculo ou talvez uma espiral, uma forma cheia e bela, algo como um sim ou um sempre ou um agora.
Você sabia muito bem, sobraria tempo para imaginar os detalhes do que estaria acontecendo no quartel central; na cidade tudo isso se sabia pouco a pouco, as pessoas estavam a par do destino dos prisioneiros, e se às vezes voltavam a ver um e outro teriam preferido não vê-los e que, tal como a maioria, se perdessem nesse silêncio que ninguém se atrevia a quebrar. Você sabia de sobra, nessa noite a genebra não ajudaria senão a morder as mãos, pisotear o giz colorido antes de se perder na embriaguez e no choro.
Sim, mas os dias passavam e você não sabia mais viver de outro jeito. Tornou a abandonar o trabalho para dar voltas pelas ruas, olhar furtivamente as paredes e as portas onde ela e você haviam desenhado. Tudo limpo, tudo claro; nada, nem mesmo uma flor desenhada pela inocência de um colegial que rouba o giz na aula e não resiste ao prazer de usá-lo. Tampouco você pôde resistir, e um mês depois se levantou ao amanhecer e voltou à rua da garagem. Não havia patrulhas, as paredes estavam perfeitamente limpas; um gato olhou-o e cauteloso de um portal quando você tirou o giz e no mesmo lugar, ali onde ela deixara o seu desenho, encheu a madeira com um grito verde, uma rubra labareda de reconhecimento e amor, envolveu o desenho com um oval que era também sua boca e a dela e a esperança. Os passos na esquina lançaram você em um corrida macia ao refúgio de uma pilhas de caixotes vazios; um bêbado cambaleante aproximou-se cantarolando, quis chutar o gato e caiu de bruços aos pés do desenho. Você se foi lentamente, confiante, e com o primeiro sol dormiu como não havia dormido em muito tempo.
Nessa mesma manhã você olhou de longe; ainda não o haviam apagado. Voltou ao meio-dia: quase inconcebivelmente continuava ali.A agitação nos subúrbios (ouvira o noticiário) afastava as patrulhas urbanas de sua rotina; ao anoitecer você voltou a vê-lo como tanta gente o havia visto durante o dia. Esperou até as três da manhã para retornar, a rua estava vazia e escura. De longe descobriu o outro desenho, só você poderia tê-lo percebido tão pequeno no alto e à esquerda do seu. Você se aproximou com alguma coisa que era sede e horror ao mesmo tempo, viu o oval laranja e as manchas violeta de onde parecia saltar uma cara tumefacta, um olho pendurado, uma boca amassada e murros. Já sei, já sei, mas que outra coisa ela teria podido desenhar? Que mensagem teria tido sentido agora? De alguma maneira eu tinha de dizer adeus e ao mesmo tempo pedir que você continuasse. Precisava lhe deixar algo antes de voltar ao meu refúgio onde já não havia nenhum espelho, apenas um buraco para me esconder até o fim na mais completa escuridão, recordando tantas coisas e às vezes, assim como você havia imaginado sua vida, imaginando que você fazia outros desenhos, que saía à noite para fazer outros desenhos.”


Júlio Cortázar (A Antonio Tàpies).

("Grafitti". Orientação dos Gatos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981)

Imagem: terrebo. http://www.fotothing.com/terrebo/photo/026154a81dd3df1fe2ecb2f98d08494c/

À memória de Alex Vallauri (Etiópia, 09/10/1948-São Paulo, 27/03/1987), que amou o grafitti.
O dia de sua morte física batiza o "Dia do Grafitti" brasileiro.

Um comentário:

Gustavo disse...

Obrigado por postar esse conto. Adoro! :)